quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Descaso



Anteontem alguns sonhos queimaram no prédio vizinho. Formaram labaredas que destruíram cômodos inteiros... chamas tão altas e ávidas que não se contiveram em invadir andares acima, apartamentos inocentes e tão pouco culpados daquela revolta dreaminiana.
Era noite e, no entreter de um programa qualquer na televisão, não importava muito de onde vinha aquele cheiro. Um cheiro doce... cheiro de incenso. Mas não importava. O que quer que fosse, não era ali. Se não havia mais ninguém em casa e não havia incenso algum ao alcance das mãos para acender, o cheiro não era ali, portanto, não importava. Só começou a achar realmente estranho quando, minutos depois, vários outros cheiros deram de iniciar e se misturar. Todos doces. Todos de incenso, e isso sabia porque disso entendia.
Mais um tempo se passou. Talvez meia hora ou mais até que um semblante feminino estampando desespero alheio e susto adentrasse ao apartamento aos berros como um vendedor de jornal do início do século XX. “Está pegando fogo!! Está pegando fogo!! O prédio lá embaixo está pegando fogo!! Você não viu!?”.
“Ver o quê, mulher? Não é o meu... deixe que queime.”. Só pensou. Achou melhor não falar. Pensou também que aquele pensamento tinha sido por demais insensível. Pensou então em que tipo de pessoa estava se tornado. Lembrou da semana anterior quando já no final da festa de aniversário de um amigo, considerou ter bebido demais pra deixar tudo aquilo acontecer na frente de tantas pessoas: a maioria dos convidados já tinha ido embora e às 2h da manhã, na sala, só estavam mesmo os amigos mais íntimos; com o corpo estirado num sofá, de repente se deparou com um corpo masculino se aninhando ao seu lado e, com maior espanto ainda, detectou a cabeça do mesmo entra suas pernas, um rosto quente lhe causando sensações intensificadas pelo teor alcoólico elevado no sangue, mãos que lhe seguravam com força os quadris e uma boca úmida que lhe beijava a parte interna da coxa esquerda com beijos que seguiam a rota certa de seus caminhos mais íntimos. Lembrou que por ter bebido demais, não se importou. Não com as carícias mais que ousadas – até em sobriedade completa não se importaria que elas continuassem pra sempre –, mas com tudo aquilo acontecendo na frente de tantas pessoas e, a maioria, completos desconhecidos. Não se importou na hora porque tinha bebido e estava gostando. Mas também não se importou de beber além da conta.
Que tipo de pessoa estava a se tornar que não se importava mais com nada? Isso não lhe agradava... não queria ser assim. Num esforço tremendo contra tal sentimento vil, levantou o corpo da cama e espiou pela janela. Viu uma fumaça pouca e preta saindo das janelas do prédio, mas como se estivessem esperando apenas seu olhar para realmente “acontecer”, num súbito fizeram-se imensas e altas, carregando junto o fogo que agora debruçava-se nas sacadas. Ouviu sirenes. Não havia mais cheiro de incensos. Tudo ficaria bem porque os bombeiros estavam chegando. A mulher falou das “conquistas de uma vida consumidas pelo fogo” com um pesar na voz, mas com curiosidade demais no olhar. Também não gostava disso: esse interesse em excesso pela vida do outro lhe desagrava. Onde estaria enfim o equilíbrio da preocupação? O meio-termo entre o se importar de menos e o se importar de mais? Talvez fosse, na verdade, o foco: com quem ou o quê se importar mais ou menos. É. É complicado. Complexo, diria.
Veio-lhe então novamente a cena do aniversário da semana anterior. Lembrou que segurou com força os cabelos do rapaz pela nuca quando sentiu o primeiro toque úmido em sua perna e ele gemeu baixinho. Sabia que ele não suportava que fizessem isso. Soltou. Ele lhe olhou nos olhos, deu um sorriso sacana e retomou a tarefa indecente. “Até onde você pretende ir com isso?”, perguntou de olhos fechados e com medo da resposta. Ele lhe beijou a carne com mais ardor no limite do possível. Os desconhecidos já não faziam questão de disfarçar os comentários maliciosos. Faziam piada até. E disso, deu-lhe o estalo de que era o bastante. Tudo ali já tinha passado dos limites. Agora se importava. Em verdade, só estava com raiva. Com raiva de si. Que raios de pessoa era que se rebaixava àquele nível? Nunca suportou ser “atração de circo” e era o que estava deixando que fizessem. Estava com raiva. “Já chega!”. Exclamou com certeza da decisão enquanto se levantava para ir embora. E foi. Com a escolta de três amigos, inclusive o rapaz, chegou em casa em paz, ou quase.
Sorriu. Concluiu que já não se importava em estar nos braços dele, com todas aquelas obscenidades traduzidas em atos promíscuos, sem que houvesse amor. O amor um dia importou. Quantas vezes não molhou travesseiros por ter a certeza do amor não correspondido? Ele nunca lhe amou. E isso não importava mais. Sorriu por ter superado. Porque também chorou quando aceitou que não havia possibilidade de amor entre os dois e que eram diferentes demais pra que isso acontecesse sem muito esforço de ambas as partes. E agora era simplesmente uma questão de honra ter aquele garoto. Toda a vez que ele pendia em seus braços, fazia de tudo para atiçá-lo que era pra ele sempre querer mais. Isso já lhe satisfazia o ego. Mas não se importava com os sentimentos que ele pudesse vir a ter. Ele também poderia sofrer um pouco se, por acaso, viesse a se apaixonar. Pouco lhe importava. Mereceria, caso acontecesse.
Mas e as pessoas do prédio vizinho? Elas mereceram? Vai saber. Não que não importasse, só estava fora de sua jurisdição. Então, preferiu não pensar sobre isso. Pensou no cheiro que sentiu antes de descobrir o incêndio tão próximo. Seria aquele o cheiro que os sonhos exalam enquanto queimam pra se desfazer? Não soube dizer.
Dormiu pensando nisso.
E acordou se importando em ser uma pessoa melhor.
Antes que não importe mais...

1 comentários:

Felipe Moratori disse...

Perfume de sonhos queimando se contrapondo ao "cheiro do ralo" da realidade.

É, meu bem.

Continuo de olho.